Maçonaria: Tradição e Modernidade

O Caráter Iniciático Da Maçonaria

Fala-se muito dos segredos iniciáticos na Lojas Maçônicas. Ouvi certa vez um Irmão dizer que era tão profundo o segredo maçônico que já ninguém mais o conhecia – eis porque ninguém jamais o revelava...

De fato, a Maçonaria, como herdeira de antiqüíssimas tradições, carrega consigo um cabedal inestimável de conhecimentos. Alguns deles se perderam para sempre, em virtude das perseguições, morte dos grandes Iniciados, ausência de Discípulos à altura de receber a sua transmissão, fatores culturais, ignorância, repetidos retornos a períodos de retrocesso histórico, e até de cataclismas naturais.

A evolução humana caminha por ciclos de ascensão e queda, e isso afeta a transmissão do saber de uma civilização para outra. É hoje sabido que velhas culturas da Mesopotâmia conheceram a pilha elétrica, e hoje confessamos nossa incompetência atual para construir uma pirâmide igual à de Kéops, apesar do imenso arsenal tecnológico de que dispomos. O Homem já soube mais sobre certos fenômenos do que sabe hoje, e nosso ufanismo tecnológico pouco se justifica.

As catedrais góticas foram construídas segundo um sistema acústico notável, sendo cada uma delas governada por uma nota musical e uma forma que ela produz ao ressoar no espaço. Assim, há a catedral na nota dó, a catedral na nota mi, e assim por diante.

Quem hoje saberia construir uma catedral segundo qualquer nota musical?

A coloração dos vitrais medievais é inimitável, mesmo com as mais avançadas técnicas modernas. O segredo da construção dos fantásticos sinos e carrilhões também está perdido. Os alquimistas fabricavam ouro e curavam a peste com poções fabricadas num fogãozinho a carvão.

Esses tesouros de conhecimento eram o apanágio das antigas escolas de iniciação, de que a Maçonaria é um dos ramos mais férteis. A arte da construção das pirâmides era ensinada nos Templos do Egito, aos adeptos osirianos. A arte gótica foi o segredo dos nossos antecessores operativos das guildas medievais. Os alquimistas foram os rosacruzes que inspiraram a moderna Maçonaria especulativa...

Onde está o segredo da Maçonaria?

O estudo das cerimônias ritualísticas, tais como chegaram até nós, pelas mãos dos místicos rosacruzes ingleses, como Elias Ashmole, Robert Fludd e William Lilly – astrólogos, cabalistas e hermetistas, pode nos indicar, como um pálido reflexo, o conhecimento profundo que eles detinham desses mistérios.

É preciso penetrar na literatura hermética e nos autores medievais para perceber que esses velhos místicos sabiam de algo que não ousavam revelar a ninguém – nem mesmo aos Irmãos de Loja. Eles escreveram sobre práticas que levavam o iniciando a ficar invisível, levitar, comunicar-se com seres de outras dimensões e a viver algumas centenas de anos... Não eram contadores de histórias, eram homens sábios, modestos, tais como os verdadeiros alquimistas.

Não pode ser coincidência que o Ritual maçônicos – na sua versão do Rito Escocês -- seja uma reprodução fiel, sob uma feição dramática, dos procedimentos de laboratório na elaboração da Pedra Filosofal. Retiramos a Pedra Virgem de uma caverna, martelamos reiteradas vezes, purificamos por três vezes usando os quatro elementos, especialmente pela água e pelo fogo... Todo o processo se faz na escuridão, até que a Pedra se revela em todo o seu esplendor luminoso... Isto para falarmos somente do primeiro grau.

Os Templos Maçônicos da antigüidade eram escolas de transmissão de mistérios da Natureza. Sob véus alegóricos e pelo uso de lendas – que os alquimistas também aproveitaram para esconder seus processos – os Mestres ocultaram grandes segredos, mas deixaram chaves e indicações preciosas no próprio ritual, para evocar o significado mais profundo. Hoje repetimos a mesma cerimônia egípcia ou medieval, usando idênticas lendas e chaves secretas, mantemos a tradição, reafirmamos o segredo e a necessidade de redescobri-lo. Mas há poucos que realmente sabem do que se trata e a maioria dos maçons apenas recita prédicas sobre vida virtuosa, e só conseguem ver na Maçonaria a beleza de uma moral sadia. Esta era, nos antigos templos, uma condição indispensável para a própria recepção na Ordem, era apenas um requisito, mas o verdadeiro fundamento dos Mistérios só era revelado durante a longa estada do discípulo no Templo -- e de modo lento, segundo os seus méritos e eficiência nos trabalhos práticos.

Um discípulo aplicado poderia levar anos para receber a revelação de um único ponto. Uma condição importante da Iniciação era a descoberta, por parte do discípulo, de certas etapas da Obra, por seu próprio esforço e merecimento. O Mestre não lhe dava informações; apenas confirmava o que o discípulo tivesse intuído por si mesmo.

A evolução era lenta, mas o resultado era notável, pois o discípulo permanecia isolado do mundo, dedicando-se exclusivamente à sua Arte, e raramente deixava o Templo. Eram anos de contemplação, meditação, prece e trabalho duro. Além dos jejuns, exercícios físicos e provas de coragem.

Nossas cerimônias atuais são uma reprodução pobre das velhas Iniciações, embora produzam certamente seu efeito, despertando no neófito a sensibilidade, operando transformações – às vezes sutis, às vezes profundas – fazendo-o revelar seu interior, trazendo à luz um poder que todo ser humano possui, mas que poucos percebem. Mas é preciso reviver esse conhecimento vetusto, escondido nas imagens das catedrais — verdadeiros livros esculpidos em pedra – nas cores dos vitrais, nas construções misteriosas de povos já desaparecidos, e numa cerimônia de natureza teatral cujo caráter oculto jaz na prática, e não na simples leitura intelectual e racional de um ritual.

Ninguém se transforma em maçom apenas por ler um ritual. É preciso bater à porta de uma Loja, ser admitido, e passar pela experiência – absolutamente individual – das provas e das passagens, tudo de acordo com velhos procedimentos, dentro de um círculo de pessoas que já passaram pelas mesmas provas e vivências. É preciso ser a personagem principal do enredo, não basta ir ao teatro assistir a peça. É nisto que reside o poder mágico do Ritual, que transmite ao iniciando uma parte da sabedoria dos antigos.

Uma vez colocado no caminho, o neófito deve percorrê-lo sozinho. Ninguém fará o trajeto em seu lugar. Ele, e somente ele pode descobrir o mistério – e tal mistério é pessoal, não é compartilhado por mais ninguém, é uma experiência única, intransferível, ainda que os passos sejam os mesmos para todos.

A Vivência Moderna

Algumas correntes de maçons não querem considerar a Maçonaria como uma escola iniciática. É retirar dela a própria essência e razão de ser, esvaziando-a de seu principal conteúdo, e transformando-a num casulo oco. É como pretender que um livro não passa de tinta e papel.

Se às vezes a Maçonaria moderna se tem extraviado por caminhos errôneos, e assim perdeu uma parte de seu conteúdo iniciático, não é motivo para redefini-la como vazia. Será preciso reencontrar-lhe o conteúdo e torná-la novamente completa. A Tradição Maçônica é rica em tesouros insubstituíveis, e seria um crime deixar que eles se perdessem, como já sucedeu no passado. É preciso fazer o esforço para protegê-los do esquecimento e do ceticismo iconoclasta.

Creio ser este o papel das Potências e das Lojas que ainda possuem a preocupação de preservar os antigos ritos e os tradicionais ensinamentos de nossos ancestrais.

Vivemos, contudo, num mundo repleto de materialismo, e fica cada vez mais difícil persuadir as mais recentes gerações a buscar o caminho iniciático. Os jovens procuram mais as sensações, as experiências intensas, a velocidade, a adrenalina, e tendem a rejeitar as vivências tranquilas da meditação, da disciplina, do estudo e da busca contemplativa.

Por isso, é sempre gratificante encontrar jovens nas Lojas Maçônicas: é um sinal de que ainda existe esperança para a espiritualidade e para as experiências de nível superior. Mas é preciso zelar para que a Maçonaria saiba atrair a juventude não somente através de seus mistérios e experiências espirituais, mas também através de seu programa social e seu engajamento nas magnas questões do mundo que habitamos. Cuidar apenas dos assuntos espirituais sugere alienação e desinteresse pelos temas cruciais que assombram nossa civilização.

É preciso tratar nas Lojas, em harmonia e igualdade de importância, os dois lados da Instituição: o aspecto espiritual, iniciático, moral, filosófico e transcendente, assim como a dimensão existencial, social, econômica e política da nossa realidade. Recusar a discussão desses temas afasta os jovens de nossas fileiras. Temos presenciado o crescente interesse deles pelos assuntos políticos atuais, e a ansiedade com que os levam à Loja para debate e esclarecimento.

É, aliás, parte integrante da história da Maçonaria seu engajamento na política – embora isto já nos tenha custado muitas vidas, perseguições, tortura e exílio. Assim, uma postura racional, e uma pregação pacífica e não-emocional dos temas se recomenda como prudente. O que não significa omissão nem renúncia ao debate. Considero uma verdadeira traição aos mártires maçons do passado ignorar a realidade cruel de nossos problemas sociais para nos enclausurarmos em castelos seguros de atividades contemplativas.

Enfim, como em tudo, é preciso buscar o equilíbrio. Estimular a experiência transcendente, que, sem dúvida, o ritual maçônico oferece, mas não esquecer nunca que lá fora há muita injustiça a ser corrigida, e muito combate a ser travado – e que não ajudaremos a melhorar o mundo acreditando que apenas a prática da fraternidade soluciona todos os problemas.

Não é preciso mudar a Maçonaria. Basta fazer com que ela saia de seu refúgio exageradamente secreto e mostre ao mundo profano seu caráter filosófico, assim como sua visão prática dos problemas da vida. Ela deve erguer sua face veneranda e ter a coragem de manifestar-se, seja nas ruas, seja nos palácios, declarando alto e bom som seu repúdio à corrupção e sua preocupação com a miséria, seu comprometimento com a Paz e sua busca pelo aperfeiçoamento da sociedade, seu amor à justiça e seu ideal libertário.

Ela não deve esconder suas idéias, e sim propô-las ao mundo, a quem as queira escutar e ler. Ela deve publicar suas opiniões e fazer-se ouvir pelos governos e pelas instituições. Ela deve reclamar um espaço nas organizações públicas e tornar-se presente nas reivindicações justas do povo.

A Maçonaria não precisa mudar. Apenas os maçons modernos devem voltar a fazer o que sempre fizeram os maçons do passado: meditar e debater nos Templos e depois proclamar suas verdades no mundo.

Vera Facciollo
Grã-Mestra da GLADA
Grande Loja Arquitetos de Aquário
São Paulo – Brasil
III Encontro da CIMAS – Montevideo
Setembro de 2005.